Capa — O movimento gay cristão
O Projeto Suplicy
 
Entre o Suplício, a Misericórdia e a Legitimação

Rubem Martins Amorese

O Congresso Nacional Decreta:

Art. 1º É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua parceria civil registrada, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais regulados nesta Lei.

Art. 2º A parceria civil registrada constitui-se mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais na forma que segue. (...)

Assim inicia o Projeto de lei nº 1.151, de 1995, de autoria da deputada Marta Suplicy. Ao ser lido em plenário, em 26/10/95, estava ele destinado a levantar grande polêmica. As primeiras críticas caíram sobre a idéia de casamento de homossexuais e lésbicas. Por todos os modos e meios, sua autora tentava explicar que não se tratava de casamento. Eis o texto usado, o da justificativa do projeto(
1):

Esse projeto procura disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e não se propõe dar às parcerias homossexuais um status igual ao casamento. O casamento tem um status único. Esse projeto fala de "parceria" e "união civil".

Os termos "matrimônio" e "casamento" são reservados para o casamento heterossexual, com suas implicações ideológicas e religiosas.

Talvez Marta Suplicy não tenha percebido que suas próprias palavras criaram a confusão, pois o parágrafo seguinte ao da citação acima diz:

Está entendido, portanto, que todas as provisões aplicáveis aos casais casados também devem ser direito das parcerias homossexuais permanentes.

A autora evita o uso das palavras "matrimônio" e "casamento", numa tentativa de minimizar o impacto da medida, mas não abre mão de mais nada.

O objetivo do projeto de lei, portanto, é estender aos parceiros do mesmo sexo todos os direitos civis reconhecidos aos casais heterossexuais, tais como: compra de imóveis, através de renda conjunta; sucessão e herança; seguro-saúde; benefícios previdenciários; declaração conjunta de imposto de renda; direito à nacionalidade, no caso de estrangeiros que tenham parceiro cidadã ou cidadão brasileiro, entre outros. A justificação da deputada menciona ainda outros benefícios importantes: estabilidade social, institucional, legal e sobretudo emocional; respeito, por parte da sociedade e do Estado; diminuição da perseguição das famílias e da violência contra gays e lésbicas, por parte da sociedade.

Suplício e Misericórdia
A grande dificuldade que tal projeto apresenta à moral cristã é que ele coloca num mesmo balaio frutas diferentes. Por um lado, justifica a medida como uma ação concreta contra a violência, a discriminação, a intolerância. Todos sabem como gays apanham neste país. O projeto se reveste, portanto, de um manto de misericórdia, com o qual tendemos a concordar.

Nesse sentido, aliás, o cristão não pode perder de vista que o homossexual é gente por quem Cristo morreu. Nesse sentido, sua condição é tão desesperadamente necessitada de redenção quanto a de qualquer heterossexual. Onde, pois, a arrogância? Está de todo descartada. Onde a discriminação e a recriminação? Não devem ter lugar em nossos corações. Devem tais pessoas, ao contrário, ser objeto de tão ou maior amor, por parte da igreja e dos cristãos. Não apenas um amor que os deixa em paz, mas um amor que busca, que atrai, que evangeliza, que ajuda, que releva, que sustenta, que quer o bem, que tem paciência, que instila confiança, que perdoa a recaída e tenta outra vez. Seremos diferentes, em alguma coisa, quanto a essa necessidade de misericórdia? Teremos, nós outros, alguma esperança, se não encontrarmos na igreja tal tratamento?

Não nos iludamos, no entanto: ainda que algumas de nossas igrejas estejam preparadas, para "alcançar" homossexuais, de uma forma geral não os queremos em nossos cultos, em nossas festas solenes com seus trejeitos esquisitos. Podemos até declarar amá-los, mas à distância.

É contra isso, em parte, que se insurge a deputada. A meu ver, coberta de razão.

Legitimação
Este projeto coloca no mesmo balaio, no entanto, toda uma proposta legitimadora e normalizadora do que chama de "orientação sexual". Pretende estender a essa gente direitos civis e reconhecimento social próprios de uma sociedade democrática e pluralista:

...reconhece como legítimos os direitos de cidadania, dignidade e respeito aos direitos humanos de milhares de pessoas que, por sua orientação sexual, não podem ter seus direitos negados... (da página "Conheça o Projeto", na Internet)

Aqui surgem duas frutas a separar no balaio. A questão de direitos civis e de cidadania e a questão da normalização da anormalidade. Coloco a questão com uma pergunta: o que se obterá como resultado dessa lei, eventualmente promulgada?

Se formos ao texto da justificação do projeto de lei em análise, veremos que os direitos civis não parecem ser a preocupação principal. Veja como começa esse texto:

O presente Projeto de Lei visa o reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo, relacionamentos estes que cada vez mais vêm se impondo em nossa sociedade.

A ninguém é dado ignorar que a heterossexualidade não é a única forma de expressão da sexualidade da pessoa humana.

Logo de início percebemos que a argumentação vai pelo caminho do inelutável. Ou seja, que devemos reconhecer que a heterossexualidade não é a única forma de expressão sexual. Portanto, as outras formas devem, também ser reconhecidas. Não se menciona (por enquanto), orientações pedófilas, necrófilas, incestuosas, bestiais e outras "realidades" tão antigas quanto o homossexualismo. Elas virão, se houver precedentes.

Na seqüência, o texto se torna ainda mais incisivo e revelador. Sob o pressuposto de que a realidade, os fatos, geram direitos, a deputada desenvolve todo um parágrafo, sob o título "Realidade e Direitos", que cito integralmente:

Esse projeto pretende fazer valer o direito à orientação sexual, hetero, bi ou homossexual, enquanto expressão dos direitos inerentes à pessoa humana. Se os indivíduos têm direito à busca da felicidade, por uma norma imposta pelo direito natural a todas a civilizações, não há porque continuar negando ou querendo desconhecer que muitas pessoas só são felizes se ligadas a pessoas a outras do mesmo sexo. Longe de escândalos ou anomalias, é forçoso reconhecer que estas pessoas só buscam o respeito às uniões enquanto parceiros, respeito e consideração que lhes é devida pela sociedade e pelo Estado.

Bem, aí está, a meu ver, o cerne da questão. Os direitos civis são importantes. E são o mote do projeto. Mas Suplicy busca muito mais. Busca a normalização do anormal. Quer, mesmo, tirar o fenômeno da opção gay do campo da "preferência" para colocá-lo no campo do "inelutável". De opção, vira fato. De escolha, vira realidade da vida. De desvio, vira espécie. De pecado, vira genético.

Com isso, vai-se a esperança daqueles que sofrem com seu estado, pois percebem que lhes é inútil lutar contra a natureza. E ao invés de buscarem ajuda, tentam impor sua condição.

Três pecados
Se a igreja se cala, confusa entre reagir de forma cidadã e exercer misericórdia, comete, a meu ver, três pecados de uma só vez: primeiro, deixa de proclamar profeticamente a esses pecadores (por que a exceção?) que há salvação e vida abundante em Cristo; segundo, deixa-se intimidar por um grupo de homossexuais arrogantes (são poucos mas ousados e barulhentos) que querem, por todos os modos, acabar com aquele mesmo pluralismo que lhes garantiu o direito de sair do anonimato; e terceiro, deixa de se manifestar, num processo democrático, sobre o que a maioria deseja para seu país (numa democracia a maioria vence, ainda que errada). Ou apenas os homossexuais terão o direito de pressionar parlamentares na direção do que julgam ser bom para toda a sociedade?

Nota:
1. Esses textos estão todosna página que a deputada tem na Internet, e podem ser consultados em:www.solar.com.br/~suplicy

Rubem Martins Amorese é consultor legislativo do Senado Federal e editor do livro Rádio & Tv no Brasil — diagnósticos e perspectivas, publicado pelo Senado. É também autor de Igreja & Sociedade, e
Icabode — da mente de Cristo à consciência moderna, ambos pela Editora Ultimato.