Massacre, impunidade e a obra-prima de Melville



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No dia 19 de julho perto de 236 baleias foram assassinadas nas Ilhas Feroe (Dinamarca). O massacre, conhecido como "trituração", envolve encurralar grupos de cetáceos em uma enseada e cortar a coluna vertebral dos animais com uma faca. O grupo de baleias piloto(cardumes com 200 a 300 indivíduos) nadava livremente nas águas do Atlântico Norte quando foi exterminado, num banho de sangue que não poupou baleias adultas, prenhas, juvenis e fetos, alguns deles ainda ligados umbilicalmente as mães. O governo das Ilhas Feroes alega que a morte das baleias é rápida e indolor, mas as imagens mostraram o contrário.

As baleias piloto são classificadas como "estritamente protegidas" pela Convenção Européia de Conservação da Vida Selvagem. A Dinamarca, que sempre nos parece um país "acima de qualquer suspeita", com uma sociedade moderna, preparada, avançada, permite esse banho de sangue, falhando claramente em suas obrigações como signatária da convenção. O flagrante só foi possível graças a Peter Hammarstedt, um membro da organização Sea Shepherd Conservation Society (SSCS), que disfarçado de estudante suíço conseguiu documentar o fato. Quando os responsáveis pela matança perceberam a curiosidade de Hammarstedt (ele aparece no seriado Whale Wars – Defensores de Baleias, que é apresentado pelo canal Animal Planet) teve de fugir às pressas.

Vale lembrar o romance Moby Dick, obra-prima de Herman Melville (1819-1891), um épico que conta a história da baleeira Pequod e de seu capitão, Ahab, cuja busca obsessiva pela baleia branca (Moby Dick) leva o barco e seus homens à destruição. Essa obra de aventura, aparentemente realista, contém uma série de reflexões sobre a condição humana. Melville descendia de família abastada, que caiu repentinamente na pobreza com a morte do pai. Não teve educação universitária e foi para o mar, viver como marinheiro, como um albatroz, cercado de aventura, viagens e destemor. Seu interesse pela vida dos marinheiros foi uma consequência natural de suas próprias experiências e seus primeiros romances foram em grande parte inspirados em suas viagens. Seu primeiro livro, Taipi, Paraíso de Canibais, foi baseado no tempo em que viveu com o povo taipi, nas Ilhas Marquesas, no Sul do Pacífico.



A pesca da baleia, que percorre todo o livro de Melville, na realidade é uma grande metáfora. Moby Dick representa uma existência cósmica e impenetrável, que desafia a ideia otimista de Emerson de que os seres humanos podem entender a natureza. O capitão Ahab insiste em imaginar o mundo como algo absoluto, cheio de respostas, de certezas, além de heróico e atemporal. Sua obsessão é uma dessas respostas, já que a baleia foi responsável pela perda de sua perna. Mas Melville não caiu nessa armadilha, e o romance mostra que, assim como não existem formas acabadas, não existem respostas definitivas, exceto, talvez, a morte. Na época em que foi escrito, a pesca da baleia era uma indústria importante (principalmente na Nova Inglaterra), pois o cetáceo fornecia óleo como fonte de energia (para lamparinas, por exemplo). Hoje, sua pesca é um absurdo sem paralelos.

A 62ª reunião anual da Comissão Internacional de Baleias (IWC), realizada no ultimo mês de junho, em Agadir, Marrocos, teve cheiro de fracasso e gosto de derrota. Os governos presentes (74 dos 88 membros da IWC) não conseguiram chegar a um acordo com relação à proposta de por fim a caça das baleias. Calcula-se que todo ano sejam caçadas no planeta cerca de 1.900 baleias, de várias espécies. Os grandes responsáveis são os baleeiros japoneses, noruegueses e islandeses, e o mais curioso é que a prática está banida por uma decisão da própria IWC desde 1986. Os países que a mantêm se valem de um artifício: a caça para fins científicos, que é permitida pela Convenção Internacional para Regulação da Atividade Baleeira, de 1946. Dez entre dez especialistas acreditam que só a opinião pública mundial pode forçar uma solução para o impasse.

Como se vê, Melville continua atual, e seu capitão Ahab ainda navega pelos oceanos, caçando com fúria, obsessão e insensível ao clamor da opinião pública. Esta, por sua vez, pouco pressiona, e é possível que em poucas décadas só encontremos baleias empalhadas ou espalhadas pelos museus, ao lado, claro, dos livros inesquecíveis de Herman Melville.

Kelly de Souza é jornalista colaboradora da Revista da Cultura e Blog da Cultura. Compulsiva por literatura, chocolate e escrita - não necessariamente nessa ordem.

FONTE: http://cultura.updateordie.com/