Devagar com o andor pós-racial

Em seu show mais recente, o comediante Chris Rock conta que vive em Alpine, um enclave de endinheirados de Nova Jersey. Segundo seus cálculos, entre os milhares de moradores, há três outros negros vivendo lá. O ator cômico Eddie Murphy e os músicos Jay-Z e Mary J. Blige, todos milionários como ele. "Sabe quem é meu vizinho?", pergunta Rock à platéia. "Um dentista branco."

Ele pára e olha o público, numa pausa dramática. "Eu e Eddie Murphy somos gênios da comédia, Jay-Z e Mary J. Blige são gênios do rap. O meu vizinho, o dentista branco, pode ser bom no que faz, mas não é tão bom quanto nós. Sabe o que seria necessário para que um dentista negro conseguisse morar em Alpine e ser meu vizinho? Ele teria que ter inventado o dente ou algo assim..."

Reconto o caso para dizer: devagar com o andor pós-racial. Os Estados Unidos mudaram, os novos eleitores, os eleitores novos e as minorias ajudaram a eleger Barack Obama -mas foi preciso uma crise econômica sem precedentes e o equivalente ao gênio negro da política concorrendo para que isso acontecesse. Sabe quando um George W. Bush negro será eleito presidente? Talvez em mais 100 anos.

Antes de Obama, outros negros concorreram ou tentaram concorrer à presidência dos EUA. Houve o ativista e líder religioso Al Sharpton, que, com seu jeito caricato, é o mais próximo que consigo pensar de um Bush negro. Houve o ex-senador Jesse Jackson, que, com sua filha fora do casamento descoberta no meio da campanha, é o mais próximo que consigo pensar de um Bill Clinton negro.

Não conseguiram passar das preliminares do treino do campeonato.

Na quarta-feira, no parque Grant, aqui em Chicago, no meio das 250 mil pessoas que esperavam o discurso da vitória do presidente eleito, foi emocionante ver a velha-guarda de ativistas reunida para a catarse final. Havia ex-Panteras Negras, líderes comunitários, organizadores de conjuntos habitacionais pobres, professores universitários e até a apresentadora de TV Oprah Winfrey, a afro-americana mais rica e bem-sucedida dos Estados Unidos.

Assim que Obama subiu ao palco, eles não conseguiram mais segurar. Oprah soltou um berro: "We did it!", "nós conseguimos!". Colin Powell, o ex-secretário de Defesa de Bush e ex-assessor de Segurança Nacional de Reagan, estava em casa com a família e disse que chorou ao ouvir o anúncio de que Obama era o presidente. Ao contar isso para a CNN, emocionou-se de novo.

A imagem das lágrimas de Jesse Jackson correndo por seu rosto enquanto o presidente eleito discursava é a mais forte dessa corrida eleitoral, na minha opinião. Ele marchou ao lado de Martin Luther King em Selma e Montgomery, no Alabama, no auge da luta pelos direitos civis. Estava com o ativista e líder religioso no dia em que ele foi assassinado, em abril de 1968.

Na quarta-feira, viu o sonho de King ser realizado e, por isso, chorou.

Naquele dia, o racismo norte-americano -e, por extensão, mundial- sofreu um golpe mortal. Mas não morreu. Ainda é preciso que dentistas negros consigam morar em Alpine, Nova Jersey. E que negros que não são Obama possam sucedê-lo na Casa Branca.