Pílulas e cinzas
Rubem Amorese

Às vésperas do Carnaval, a Igreja Católica representa judicialmente contra a distribuição da "pílula do dia seguinte", e o ministro da saúde vai à televisão para dizer que "a igreja errou mais uma vez, pois a prevenção da gravidez não é uma questão religiosa, mas de saúde pública". A Igreja reage, dizendo que a Lei de Deus é para todos. Desfecho: a juíza determina que a distribuição seja feita, por entender que o método não é abortivo. 

Se o ministro tivesse tempo para pensar um pouco mais, talvez escolhesse melhor as palavras. Porém, o afogadilho precipita os fatos. Por um lado, o arcebispo de Recife e Olinda leva uma questão que acredita ser matéria de fé para um tribunal secular; por outro, o ministro manda-o recolher-se aos seus domínios, sem precisar quais seriam eles. 

Penso que o ministro está certo ao dizer que a orgia carnavalesca é questão de saúde pública. Mas também concordo com o arcebispo quando ele sustenta que o assunto tem a ver com Deus, pois envolve a alma humana. Talvez ainda venhamos a saber por que razão ele levou a questão à Justiça. Mas desconfio dos pressupostos ocultos do ministro que, certamente, fala por um governo de orientação ativa e passivamente liberal. 

E não pensemos apenas em moral sexual, pois aprendemos com o apóstolo Paulo que a degradação humana nunca vem por um pecado só (Rm 1.21-27), embora sempre bata ponto numa cama. A propósito, pesquisa revela que, na novela global "Sete Pecados", a luxúria ultrapassa, em número de cenas, todos os outros seis pecados juntos. Por quê? Palpite: predileção. 

Acho que, ao classificar a promiscuidade no Carnaval como caso de saúde pública, o ministro Temporão pensou mais em prevenção do que no conceito de saúde. Por ser pragmático, talvez ele tenha trocado o importante pelo urgente. E o urgente, imagino, é evitar que o índice de abortos clandestinos fuja ao controle; que o número de recém-nascidos achados nos lixos, esgotos, ou córregos seja de proporções epidêmicas; que as famílias das meninas que sairão grávidas ou infectadas dessa "festa popular" empobreçam, e até que o governo tenha de gastar em penitenciárias para receber os "filhos enjeitados do Carnaval" de 2008. 

O ministro tem estatísticas em mãos e sabe que, diferentemente da Cultura ou do Turismo, para sua pasta, Carnaval é sinônimo de tragédia.
 
E como ele enfrenta essa ameaça? Distribui, gratuitamente, pílulas e camisinhas aos foliões. E resolve? Bem, concordo que evita o pior, momentaneamente, mas não resolve, pois não existe camisinha para alma promíscua (nem mesmo as cinzas da quarta-feira, sem verdadeiro arrependimento). 

Senhor ministro, deixe a Palavra de Deus ajudar. Ouça-a. Se aborto, gravidez indesejada, aids, evasão escolar, desemprego etc. não são problemas religiosos, então o que será? As providências de vossa excelência são tão eficazes quanto tratar catapora com esparadrapo. 

Já imaginando o que ele me responderia, deixo-lhe um respeitoso alerta: "Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te argüirei e porei tudo à tua vista" (Sl 50.21). 


Rubem Amorese é consultor legislativo no Senado Federal e presbítero na Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília. É autor de, entre outros,
Louvor, Adoração e Liturgia e Icabode – da mente de Cristo à consciência moderna.
ruben@amorese.com.br